Descentralização de competências deve manter a universalidade dos serviços públicos
A lei-quadro da transferência de competências para as autarquias, acordo feito e aprovado na Assembleia da República pelo PS e pelo PSD, entrou em vigor no dia 17 de setembro de 2018, mas os municípios têm até 2021 para decidir quando querem que as delegações sejam efectivas. A lei 50/2018 estabelece “o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local”. No diploma determina-se, porém, que a transferência das novas competências, a sua natureza e afectação de recursos serão concretizadas “através de diplomas legais de âmbito sectorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração directa e indirecta do Estado”.
São 23 diplomas que o Governo, através do Conselho de Ministros, fará e já fez aprovar e serão delegadas competências aos municípios nas áreas da saúde, educação, habitação, policiamento de proximidade, exploração das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, fundos europeus e captação de investimento, promoção turística, praias, justiça e associações de bombeiros, entre outras.
A verba disponibilizada aos municípios no Orçamento de Estado para 2019 é de 2.579 milhões, mais 6,2% do que em 2018. Estas verbas, que são insuficientes já que a maioria dos municípios sofre de um subfinanciamento crónico, vêm do Fundo de Equilíbrio Financeiro, do Fundo Social Municipal e da participação variável no IRS, conhecendo a acentuada desigualdade que existe na sua distribuição pelos municípios, e as lacunas que têm ajudado a criar entre as autarquias. O Fundo de Financiamento da Descentralização, que foi criado no âmbito da Lei de Delegações de Competências, só será assegurado pelo Governo em 2019.
É necessário estarmos atentos a esta municipalização disfarçada de descentralização, um processo que pode afundar ainda mais os pequenos e médios municípios do país e criar ainda mais desigualdades entre eles. Necessitamos um país descentralizado, mas não de qualquer maneira já que esta transferência de competências não está a ter em conta a diferença da capacidade financeira dos municípios. Num país que é tão desigual, que tem tão pouca coesão territorial, estarmos a transferir competências para municípios que depois têm capacidades financeiras tão diferentes, massa crítica tão diversa, na verdade vai criar mais desigualdade territorial.
O Bloco de Esquerda defende o princípio da subsidiariedade, ao abrigo do qual as competências estão alocadas ao órgão mais competente para as executar. A este princípio está subjacente a democraticidade e, como tal, que o órgão seja eleito por sufrágio universal e com escrutínio pelas populações.
O Programa do XXI Governo Constitucional prevê mecanismos de descentralização, mas sempre feita para municípios e freguesias. Prevê igualmente a existência de uma nova autarquia, a Área Metropolitana, necessariamente com eleição directa, que poderá ser também receptora de descentralização de competências. No entanto, em relação a esta nova autarquia, o Governo recuou em relação ao seu programa.
O Programa recusa uma descentralização em figuras jurídicas de cooperação intermunicipal, como sejam as comunidades intermunicipais. Há boas razões para que assim seja, pois as comunidades intermunicipais, tal como as CCDR, não constituem autarquias locais, dotadas de assembleias eleitas directamente, sendo assim destituídas da legitimidade democrática directa que a Constituição exige quanto às autarquias locais. Por isso, não se deve aceitar que estas estruturas sejam objecto de descentralização de competências, por não se tratar de uma verdadeira descentralização, que carece de legitimidade democrática resultante da eleição directa.
O XIX Governo Constitucional (PSD/CDS-PP) através do Decreto-Lei n.º 30/2015, de 12 de fevereiro, havia já ensaiado um regime jurídico para a delegação de competências nos municípios e entidades intermunicipais, no domínio de funções sociais. Este diploma, a par da precariedade implícita na delegação de competências, bem diferente da sua transferência definitiva, previa que essas delegações de competências fossem feitas enquanto projetos-piloto. Por outro lado, permitia uma grande amplitude de delegação de competências de estabelecimentos de educação, saúde e cultura, que motivaram diversas críticas e a forte oposição de vários sectores da sociedade portuguesa, tendo em conta especialmente a necessidade de assegurar, em todo o território, a igualdade de acesso e de qualidade relativamente a esses serviços, bem como da preservação da autonomia desses estabelecimentos.
A gestão dos estabelecimentos escolares, nos termos do artigo 77.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, implica que professores e alunos tenham o direito de participar na gestão democrática das escolas, devendo esse direito assumir preponderância na gestão dos estabelecimentos de ensino e não se quedar por uma participação mínima ou acessória.
A transferência de competências da administração central para as autarquias locais não pode ainda conduzir ao desmantelamento de serviços públicos, potenciado pela eventual ausência de meios e escala para as competências a transferir, levando as autarquias a recorrerem à subcontratação a privados ou a uma nova proliferação de empresas municipais e intermunicipais para o exercício dessas competências.
Por último, todo o processo de descentralização de competências deve ser acompanhado de financiamento suficiente e adequado para que as autarquias locais assumam as suas novas competências, considerando até o recorrente incumprimento da Lei das Finanças Locais, traduzido num cenário de grave condicionamento da autonomia das autarquias, e num crónico subfinanciamento das freguesias.
Nesse sentido defendemos que:
1 - Que a descentralização de competências promova a democracia, a participação e capacidade de decisão cidadãs e, como tal, apenas sejam receptoras de competências as autarquias locais (freguesias, municípios e regiões administrativas) eleitas por sufrágio universal;
2 - Que a descentralização não englobe competências dos serviços públicos cujo exercício não recomende uma escala municipal ou que coloque em causa a autonomia do ensino;
3 - Que a descentralização de competências tenha como objectivo manter a universalidade dos serviços públicos, sendo a mesma realizada com a devida transferência financeira plurianual e interditando privatizações ou concessões a privados;
4 - Que a descentralização de competências proteja os direitos laborais dos trabalhadores e trabalhadoras em causa, garantindo os seus direitos laborais, incluindo de antiguidade e funções, e a sua inclusão no processo de integração de precários na função pública;
5 - A implementação dos mecanismos que tenham em vista, num processo de descentralização, a criação das regiões administrativas enquanto factor democrático essencial, para que sejam assegurados órgãos com legitimidade própria, pluralidade, escala, meios e capacidade de decisão das respectivas populações.
Vereador do Bloco de Esquerda
Luís Gomes
Salvaterra de Magos, 05 de Dezembro de 2018